terça-feira, 21 de maio de 2013

Lúcia-Já-Vou-Indo


Texto: Lúcia-Já-Vou-Indo

Lúcia-Já-Vou-Indo(Maria Heloísa Penteado)

Lúcia Já Vou Indo não conseguia andar depressa. De maneira nenhuma. Andava devagar, falava devagar, chorava e ria devagarinho e pensava mais devagar ainda.
Muito natural, pois ela era uma lesma.

Um dia Lúcia-Já-Vou-Indo recebeu um convite para uma festa. Levou o dia inteirinho para ler o bilhete que dizia assim: “Chispa-Foguinho, a libélula, convida você para uma festa dançante, embaixo do Pé de Maracujá, às oito horas da noite do dia 30 de janeiro. Comes e bebes, muita música, muita alegria, tudo do bom, do melhor e de graça”.

Mal acabou de ler, Lúcia já se foi preparando para a festa. Queria se pôr a caminho imediatamente, embora faltasse ainda uma semana.

-Juro que vou chegar na hora!- Disse para si mesma. E começou a lembrar as muitas festas que havia perdido por chegar sempre atrasada. Ao aniversário da Maroquinha Cocinela, que era sua vizinha, chegou um dia depois da festa. Ao casamento do grilo João das Pintas com Sarapintada, chegou tão tarde que foi encontrar um casal já com um filhinho.

Nesse instante, o relógio da sala bateu três horas da tarde e Lúcia Já Vou Indo teve um sobressalto.
Pois não é que já perdera duas horas pensando naquelas coisas? E começou a se arrumar afobadamente.

Pôs na cabeça uma peruca de cachinhos com um laçarote de fita cor de laranja, e com isso perdeu um dia inteirinho.
Encheu uma cesta com brotinhos de alface para ir comendo pelo caminho, e lá se foi mais um dia. Deu corda no relógio para que não parasse na sua ausência e outro dia perdeu.

Só faltava fechar a casa e ela perdeu nesse serviço mais um dia.

Enfim, a molenga se pôs a caminho, tendo exatamente três dias para chegar ao Pé de Maracujá que não era muito longe.

Chegou o dia da festa e ela ainda estava andando. Pelo caminho encontrou muita gente que também ia pra lá. Viu dona Içá, com a cinturinha apertada num cinto de fivela de ouro, de braço dado com o marido de camisa listada e boné. Viu Lili Taturana, toda besuntada de brilhantina para que seus pelinhos não ficassem arrepiados. Viu Zé Caramujo de cachecol xadrez enrolado no pescoço. Viu as formiguinhas Quem-Quem numa longa fila, comportadas e quietinhas como meninas de orfanato a passeio num domingo. Viu abelhas, besouros, pernilongos, vespas e mil outros bichinhos. Todos passavam por ela e sumiam ao longe.

-Depressa , assim você não chega! – Diziam de passagem.

E ela dizia devagarinho mastigando um brotinho de alface:
-Já Vou Indo... Já Vou Indo... – Esse esforçava, pensando que estava andando um bocadinho mais depressa.

Que engano! Quase não saía do lugar.
Enfim, ela começou a ouvir a orquestra das cigarras. Estou pertinho, pensou, mais algumas horas e estou lá.

E o seu entusiasmo era tamanho que até conseguia de fato, andar um pouquinho mais depressa.

-Olha a pedra no caminho! – Gritou nesse instante João-Barata do Mato, que também ia indo pra festa.

Aviso inútil, porque Lúcia-Já-Vou-Indo a viu muito bem. Era a Maria Redonda, uma pedra perversa que gostava de pregar peças nos outros. Ficava sempre no meio do caminho, de propósito para que tropeçassem nela e caíssem. Então ria de se sacudir toda.

-Eu vou me desviar dela – pensou a lesminha. Mas a coitada pensava mais devagar ainda do que andava. Por isso não teve tempo de se desviar. Tropeçou e caiu. Mas não se machucou porque caiu muito devagarinho. Tão devagarinho que a pedra nem achou graça.

Lúcia levantou-se, arrumou a peruca que se havia entortado na cabeça e foi buscar a cestinha que havia rolado longe. Nisso, perdeu um dia e mais outro.

Quando chegou ao Pé de Maracujá, não havia mais nem sinal de festa, a tão esperada, comentada e suspirada festa.

Quem achou graça no caso foi o Pé de Maracujá. Começou a bater uma folha na outra e cantar assim:

“Lúcia-Já-Vou-Indo
Vinha vindo, vinha vindo,
Tropeçou numa pedrinha,
foi caindo, foi caindo”!

Mas Lúcia não achou graça nenhuma. Chorou muito, o seu chorinho vagaroso de lesma: uma lágrima por hora, um soluço a cada meia hora.

Chorou, chorou, mas seu choro manso não conseguiu acordar a libélula Chispa-Foguinho que dormia cansada da festa. Ela só escutou o chorinho da lesma no outro dia quando acordou.

- O que será isso? – a libélula disse e foi espiar. Viu a pobre Lúcia chorando, compreendeu tudo e ficou morrendo de pena.

Foi buscar uns docinhos que sobraram da festa e ofereceu-os à Lúcia. Conversou bastante com ela para ver se a consolava, e nada. Lúcia-Já-Vou-Indo continuava com o seu choro em câmara lenta e depressa a libélula se cansou. Numa última tentativa ela disse:

- Sabe Lúcia, quem vai dar uma festa agora é você. Sendo a festa na sua casa é impossível você chegar atrasada.

A lesminha ficou pensando naquilo e, como pensava muito devagar, a libélula chamou as irmãs e, ligeiras como foguetinhos, foram à casa da Lúcia, prepararam tudo e distribuíram os convites.

Credo! A família da libélula era toda elétrica. Zás-trás e tudo ficou pronto. Só faltava colocar a Lúcia dentro de casa para receber os convidados.

Enquanto isso, Lúcia-Já-Vou-Indo, que já tinha acabado de pensar e estava encantada com a idéia, vinha vindo o mais depressa que podia, talvez dentro de alguns dias - se não tropeçasse outra vez na pedra Maria Redonda- estivesse em casa.

E a libélula Chispa-Foguinho tinha agora um problema: os convidados já estavam chegando e a festa não podia começar porque a dona da casa estava fora. Como trazer Lúcia o mais depressa possível?

Cric!... A libélula deu um estalinho. Já descobrira a solução. Num abrir e fechar de olhos, explicou tudo às irmãs e foram buscar a Lúcia.
Puseram a molenga em cima de uma folha de capim e vieram voando trazendo a folha pelos ares. Danadas como elas só, em dois minutos a lesma estava em casa. Isso, apesar de ter caído da folha três vezes.

Foi assim que, oh maravilha!
Pela primeira vez na vida, Lúcia-Já-vou-Indo assistiu a uma festa inteirinha, do começo ao fim.

Pedro Malasartes (O doutor Saracura)


Pedro Malasartes (O doutor Saracura)


Anda que anda, Pedro Malasarte chegou a uma cidade onde o maior edifício era o hospital. Havia para mais de duzentos enfermos ali internados, cada um deles padecendo dos mais variados males. 

Pedro Malasarte matutou um pouco e foi procurar o diretor do hospital. 

-Não há mais lugar – foi-lhe dizendo este ao vê-lo entrar, com medo que fosse mais um doente. 

Realmente, velho e cansado, o doutor Pulsação já não conseguia dar conta de tantos enfermos. E estava ficando difícil arranjar comida e roupa lavada para toda aquela gente. É que mais da metade eram de espertalhões que se fingiam de doentes para comer e beber de graça. 

-Meu bom colega -disse Pedro Malasarte. -Imagine que soube das suas dificuldades e viajei de muito longe para ajudá-lo. Meu nome é doutor Saracura e já acabei com muitas epidemias. Pela módica importância de duzentas moedas prometo esvaziar seu hospital amanhã ao meio-dia. 

O velho diretor ficou exultante. Estava mais do que barato. O grande médico estrangeiro ia pôr toda aquela gente na rua, curada! 

Havia muitos doentes de verdade, aleijados, paralíticos, loucos... Mas Pedro Malasarte deu um jeito de se aproximar de um por um, sempre com a pose de um grande doutor, e, fingindo examiná-los, dizia-lhes no ouvido: 

-Homem, quem não estiver em condições de sair correndo pela porta da rua amanhã ao meio-dia, será torrado para se preparar um xarope para os outros. 

Mesmo os que estavam em pior estado – e até os loucos – compreenderam muito bem suas palavras e arregalaram os olhos. E todos trataram de preparar suas trouxas para escapulir dali logo que pudessem. 

No dia seguinte, Pedro Malasarte mandou abrir de par em par os portões do hospital. 

Então subiu até a enfermaria, junto com o doutor Pulsação, e bradou: 

-Quem se sentir curado pode sair correndo pelo portão! 

Não ficou um só doente na cama. Todos, sem exceção, dos que tinham bronquite a dor de cabeça, pularam do leito e, com a trouxa nas costas, trataram de dar o fora com quantas pernas tinham. E os que não tinham pernas ou eram paralíticos arranjaram quem os carregasse. 

O doutor Pulsação ficou boquiaberto com aquele milagre. Em poucos minutos o hospital ficou deserto. O único doente que permaneceu deitado foi um que morrera de noite e por isso mesmo não podia se levantar. 

Pagou ao estraordinário médico estrangeiro as duzentas moedas pedidas, ao que este se despediu: 

-Tenho muito que fazer em outras terras. 

Passou-se uma semana na mais perfeita paz. O doutor Pulsação nunca tivera tanto sossego. Então, meio ressabiados, começaram a voltar os doentes. Mas só os doentes de verdade, que não se aguentavam de pé. Os outros, os aproveitadores, resolveram ficar longe do hospital onde se torrava gente para fazer remédio...